E era noite. O vento entrava de
janela adentro e enchia o quarto com um quê de frieza, estranheza. De fato tudo
parecia diferente, o vazio se espalhara pelo cômodo e pelo jeito não tinha
pretensões de ir embora nem tão cedo, pelo menos até a noite ir primeiro.
O ruído dos automóveis lá em embaixo era
distante, quase que um zumbido. Nem parecia ser na mesma cidade, na mesma hora.
Estava separada do zum zum da rua por cinco andares.
Já
passara a hora do ângelus e o friozinho que entrava anunciava uma noite
tenebrosa. Do cinzeiro a fumaça do cigarro perdia força. A qualquer momento a
porta iria abrir e ela precisava de uma explicação. Os pensamentos se
aglutinavam em sua cabeça e pareciam se perderem em meio a um turbilhão de
dúvidas.
Fazia apenas quatro meses que estava ali.
Era seu primeiro emprego após árduos seis anos de faculdade e dois de
residência. O som da música do baile de formatura ainda ecoava com clareza em
seus pensamentos, ora misturado com luzes que mudavam de cor e cheiro de
álcool, ora misturado com a imagem dele. A primeira imagem de quando o viu
sentado na grama no largo jardim do hospital.
Era um
gramado bem verde. Lá no fundo, embaixo de uma copaíba estava o seu primeiro
desafio, seu primeiro paciente não muito adepto a conversas, nem convenções
sociais. “Síndrome de Asperger”, estava escrito em seu prontuário. Aproximou-se
e o chamou pelo nome. Ele virou, sorriu e continuou sua leitura.
Era um jovem
que tinha pouco menos do que a sua idade, talvez por isso ela se sentisse de
alguma maneira próxima dele. Como a própria síndrome sugere, ele possuía
interesses específicos e se importava com pouca coisa ao redor, um tipo de
autismo. Sentado na grama na posição de lótus, calça jeans, camiseta branca e
sandálias, absorto a tudo e ávido em sua leitura.
Lia alguma
coisa sobre música, pelo menos era o que dava para ver na capa. Permaneceu ali
pelo tempo necessário de terminar a leitura de três laudas, só então virou pra
ela e perguntou se ela queria saber sobre tropicalismo.
O diálogo foi
surgindo aos poucos e como parte da terapia ela demonstrava interesse pelo o
que ele falava. No entanto, prestar atenção nele não era trabalho, era até bom
ver aquela pessoa que ora parecia vulnerável e carecida de sua ajuda se
agigantar diante de seus olhos. Tão convicto e seguro falando de coisas sérias
que dissipava o ar de terapia que aquele encontro haveria de ter. Muitas vezes
ela mesma se questionava o por quê dele estar ali.
Sucederam vários
encontros, a cada manhã ele a esperava à sombra da copaíba com um livro
diferente. Parecia melhor, ansioso, embora só conversasse com ela. O olhar fixo
e indiferente se enchia de vida quando ela aparecia com jaleco e sentava ao seu
lado. Vendo os dois ali não parecia que havia paciente a ser analisado, nem
médico em busca de sintomas.
Pareciam dois
jovens que conversam sobre livros, sobre vida, sobre música. Ela começou a
sentir falta dele nos finais de semana e passou a visitá-lo nesses dias. Sem
jaleco nem pranchetas, caminhavam pelo jardim do hospital rindo das teorias que
o diagnosticava com problemas de convívio.
Falavam como
eram parecidos e de como se davam bem. Ela já havia pensando muito a esse
respeito. Como poderia seis anos numa academia e sentir-se atraída por um
paciente? Como explicar uma melhora tão visível nele? Ou ele estaria aqui por
engano?
Os meses
foram passando e eles cada vez mais próximos. Já não era apenas afinidade,
havia sentimento, ainda que velado, restrito ao toque no ombro e o pegar sutil
das mãos.
O tratamento
dele chegara ao fim, teria alta na quarta-feira próxima. Propunha a ela a
proposta mais difícil da vida dos dois. Estaria livre do hospital psiquiátrico,
logo, apto a uma vida comum. Estaria ela disposta a ir com ele pra uma outra
cidade, onde ninguém o tivesse visto antes ou o conhecido, para então,
começarem uma história juntos, sem estigmas, sem preconceito? Fugir da sensatez
pra se sentir vivo ao lado do outro, mesmo tudo parecendo uma loucura?
Ele estaria
às oito horas da noite, de mochila nas costas, calça jeans, camiseta branca e
tênis esperando por ela. Esperaria dezessete minutos – e ela conhecia bem a
precisão dos seus segundos, acaso não viesse iria embora sem notícias.
Era uma
proposta absurda. Ela não ousou nem sequer comentar com alguém a respeito, até
porque já havia insinuações sobre os dois nos corredores do hospital. Pensou na
carreira que estava começando e o quanto aquilo iria pesar no seu currículo. Ao
mesmo tempo pensou na efemeridade da vida, do quanto somos finitos e o quanto é
tênue a barreira entre o louco e o normal.
As dúvidas
não a deixavam raciocinar. Fumava um cigarro atrás do outro.
Estava no
quarto. Da janela aberta um vento frio enchia o cômodo de frieza, estranheza.
Passara da hora do ângelus, próximo das dezenove horas. Ela tinha decidido.
Iria embora, mas antes, precisaria comunicar a sua saída do hospital ao seu
superior. Não iria contar o porquê, a ninguém interessava, apenas comunicá-lo
que não viria mais no dia seguinte. Talvez se ele pedisse uma explicação
falaria qualquer coisa que viesse a cabeça.
Mesmo
decidida sentia medo. Suas mãos tremiam.
A porta abriu. A face tingiu-se de um branco pálido. O
coração ficou arredio, a boca seca. Chegara o momento.
Viu o diretor
do hospital. Porém, não estava sozinho. Estavam também seus pais, que ao vê-la
correram ao seu encontro e abraçaram-na com fervor. Será que eles sabiam do que
ela estava por fazer? Pensou.
Havia outros
três enfermeiros. O quarto encheu de pessoas de branco e jaleco. Ela não estava
entendendo mais nada. O que estava acontecendo, afinal?
O diretor do
hospital então fechou a porta. Sorriu pra ela e do envelope que trazia nas mãos
tirou uma folha. Olhou para sua mãe e a entregou. Era sua redenção. Sua vida de
volta, depois de meses de desintoxicação longe dos seus.
Uma nova
chance de tentar ser feliz.
Deu-lha
alta.
Copyright © 2013 by Madalena Sofia Galvão Viana
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