Lembro-me de um inusitado presente que ganhei aos oito anos de minha mãe no dia
das crianças. Estava bastante ansioso, como toda criança fica, esperando o dia
12 de outubro. Despertei feliz naquela manhã e quando vi o embrulho que ela
trazia com um sorriso no rosto, e o brilho no olhar de quem espera ver a cara
de uma criança ao desembrulhar o pacote.
O que seria? Um carrinho, um G.i joe? Nossa! ganhar um desses era meu
grande sonho. Ávido agarrei o pacote. Apalpei-o por um tempo... Era quadrado...
Talvez fosse um jogo, um quebra-cabeças. Qual nada.
Desembrulhei desconfiado. Era um dicionário, “Aurélio” dizia a capa. Birrento,
indaguei-a sobre tal presente! Como poderia ter dado um negócio daqueles para
uma criança? Destruindo seus sonhos, suas ilusões. Pra quê era aquilo?
Decepcionado chorei. Ela só disse que seria muito útil. Pensei em jogar no
chão, rasgar ali mesmo, externar minha fúria. Mas bobo eu não era, só faltava
para piorar tudo, levar uma surra.
Ultrajado, pensei nos colegas da escola. O que eu ia dizer sobre tal presente?
Segunda-feira era o grande dia, onde todas as crianças iriam exibir jubilosas
seus prêmios, era o dia de se gabar durante o recreio. Pensei em faltar. Uma
bobagem, porque não poderia me esconder para sempre. Bem, eu poderia mentir,
dizer que ganhei o Forte Apache ou a versão super-size do castelo de Greyskull
com todos os mestres do universo dentro.
Não, um presente tão magnifico iria provocar uma romaria a minha casa. Ficaria
ainda mais ridículo. Resolvi encarar. Estufei o peito naquela segunda fatídica
e fui para a escola. Dito e feito, lá estavam os sortudos que nem esperaram a
hora do recreio. Corriam pelo pátio com aviõezinhos, brincavam no chão com
carrinhos de bombeiro, chutavam bolas couraças novinhas e as meninas desfilavam
com bonecas de todas as formas cheiros e cores.
E para piorar a situação tinha um garoto da 5ª série tirando da cartela um G.i
joe. O gabola esperou friamente o dia seguinte para libertar seu Comandos em
Ação. E esse era o mais cobiçado porque trazia no blister duas tintas para
camuflagem facial. Maldito dicionário! Deveria ter uma lei que proibisse as
mães de dar certos presentes aos filhos no dia das crianças. Roupas também se
encaixariam nessa categoria!
Demorou um pouco, mais rapidamente fui cercado por todos os flancos, e veio
enfim a pergunta que tanto temi e que não me deixara dormir na noite anterior.
“Ganhou o quê?”
Um Aurélio. Respondi, olhando para os lados.
E como se brinca?
Não se brinca. É um dicionário, falei tirando-o de minha mochila.
Rapidamente todos se afastaram, como se eu tivesse com catapora. Parece que fui
o único contemplado com tal presente, não só na minha sala como em toda a
escola. E por isso mais cedo ou mais tarde seria “ridicularizado”,
“escarnecido”, “zombado”. (eu andei dando uma lida nele!) maldito dicionário!
Algum tempo depois, para minha surpresa, durante a aula a professora perguntou
se alguém tinha um dicionário. Lentamente ergui meu braço. Todos me olharam
como se eu fosse um extraterrestre. Nunca fora popular, e andando com um treco
daqueles...
Curiosamente, meus colegas passaram a frequentar minha banca com assiduidade.
Todos queriam consultar meu dicionário. Todos. Os valentões, os fracotes, as
meninas bonitas, os inteligentes.
Até que eu ouvi alguém dizer: “vou pedir pro meu pai comprar um também”. O jogo
mudara naquele momento. Eu queria ganhar um brinquedo, mas ganhei algo que me
acompanhou por muito tempo.
Vinte anos depois com o dicionário Já velhinho, puído e ultrapassado tive
que me desfazer dele. Com pesar, para minha surpresa, pois não tinha sido tão
complicado me separar dos meus brinquedos durante a transição de minha infância
para minha mocidade.
Mas do dicionário, daquele que me abrira várias portas, que me revelara o
significado de várias palavras, que me tirou de vários apuros ortográficos,
mesmo tendo outros dicionários em casa, não foi fácil. Bendito dicionário!
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