Sábado
de plantão. Depois de alguns atendimentos domiciliares, a ambulância ruma pela
cidade. Os contrastes do Rio de Janeiro sendo vistos pela janela. Tentava
absorver a cidade com os olhos, vendo meninos jogando futebol, mulheres
conversando fortuitamente nas cadeiras da calçada e pude ver no Irajá uma
pichação da cigana Oleska: “Trago o amor em 7 dias. Se não trouxer não era
amor”. De alguma maneira, aquele recado escrito no muro enegrecido mexeu com
todos ali. Luiz, o motorista, sorriu. André, o enfermeiro, cuidou em tirar foto
para mandar à namorada. Eu fiquei pensando na verdade da sentença.
Chegamos
a Madureira, destino do atendimento domiciliar. Terra do samba, das mulatas que
requebram até de manhã, da Portela e Império Serrano. Isso pouco importava. O
rádio já havia confirmado que um senhor 88 anos estava em franca dispneia.
Entramos numa vila de casas pequeninas e na residência de cor amarela avançamos.
O sofá era o abrigo para o senhor. Ele estava sentado, com a respiração
aparentemente normal. Os olhos perdidos, a boca desviada e a interação quase
inexistente davam indícios que logo a filha confirmou: “Ele teve um derrame e
ficou assim”.
A
esposa chorou. Contou do drama que vivia há 13 anos. Relatou a dificuldade de
conviver com o corpo do homem que amou, pois a alma dele foi embora depois do
acidente vascular cerebral. “Ele não é mais o mesmo. Nem olha para mim”. Depois
de um tempo, perguntei o motivo do pedido de avaliação emergencial e a esposa,
uma senhora bem apessoada na casa dos 60 anos, respondeu:
-
Ele anda tossindo demais.
Depois
de contar suas agruras, a esposa pediu para sair do lugar, pois não estava bem.
Rumou para o lado externo da casa, mais precisamente para área comum da vila.
Examinei
o doente e nada encontrei. André viu os sinais vitais e nada estava alterado.
Explicamos para filha que não existiam motivos para maiores preocupações. Ela
respirou aliviada e ofereceu uma goiabada com queijo. Luiz, o motorista, que
sempre fica ao nosso lado, pensando em algum doce ou refrigerante ofertado
pelos donos da casa, incrivelmente não estava lá. O motorista tinha localização
incerta. André o procurou, mas deve ter pensado o mesmo que eu, que nosso
companheiro saiu para fumar. Aceitamos a oferta gastronômica e nos deliciamos.
Saímos
satisfeitos da casa amarela. Primeiramente, pelo paciente que fora apontado
como dispneico e que estava bem. E também, por comer um quitute muito bom.
Ficamos ao lado ambulância e nada do Luiz. André pensou em ligar para
localizá-lo, e eu decidi tentar abrir a porta do veículo, que já estava aberta.
Ouvi um bulício na parte traseira e fui verificar. Olhei pela janelinha
consegui ver um casal se desvencilhando de um beijo.
Ao
entrar no veículo, atrapalhamos o clima de romance. A mulher quis correr, mas
Luiz segurou sua mão. Só soltou depois de alguns sussurros e de um telefone
anotado. A mulher era a esposa do paciente atendido há pouco, aquela que
reclamara da solidão compartilhada com o homem que já amou. Desceu ajeitando-se
da ambulância e olhou novamente para Luiz antes de caminhar em direção à casa.
Luiz
saiu da parte traseira da ambulância e entrou na boleia logo em seguida.
Fitou-nos com os olhos e disse:
-
O que foi? Nunca viram uma pessoa consolando outra? Eu não sou cruel.
Pensando
bem, não havia local mais adequado para aquele flerte. A parte traseira da
ambulância, local destino ao cuidado dos pacientes, foi escolhida. Quem disse
que a falta de amor não faz adoecer? Talvez, naquele atendimento, Luiz tenha
sido mais terapêutico que eu. Tenha resolvido mais questões de saúde até.
Depois,
Luiz disse: “ninguém viu nada demais”. Ficamos em silêncio e o assunto nunca
mais foi retomado, parecendo ter sido abafado pelo barulho da sirene.
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