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Das Vantagens de Ser Bobo (Clarice Lispector)

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  O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo. O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia. O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea o...

Passei Uns Dias Sentindo Um Calor (Elaine Cristina dos Santos Lima)

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  Passei uns dias sentindo um calor. Calor que surgiu na minha epiderme e se infundiu até a camada mais profunda da minha alma. Um calor desses que só pode surgir na pele porque necessita de estímulos sensuais, dos sentidos e da carne. Aliás, como toda emoção. A sensualidade é fundamental. Gosto de ouvir, de tocar, de ver e gosto que sintam em mim. A cada movimento da vida se apresenta uma possibilidade de experimentar o inusitado. Muitas vezes desafiando o espaço e o tempo e sempre desafiando o tradicional. Embora, não seja fácil e nem óbvio entender. Mas, eu me esforço. A vida não deixa de ser um labirinto explosivo de sensações que nos exige atenção e entrega. Eu me entrego. Não me entrego numa cega submissão a um destino dito predeterminado e sim, me entrego, numa escolha racional e emocional posta como possível. É uma vida ardente de explosões sentimentais que quero e vivo sempre que o momento me aparece. Esses dias de calor me pareceu um desses momentos. Fiquei ...

Carne e Osso (Zelia Duncan / Paulo Correa De Araujo)

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A alegria do pecado Às vezes toma conta de mim E é tão bom não ser divina Me cobrir de humanidade me fascina E me aproxima do céu E eu gosto De estar na terra Cada vez mais Minha boca se abre e espera O direito ainda que profano Do mundo ser sempre mais humano Perfeição demais Me agita os instintos Quem se diz muito perfeito Na certa encontrou um jeito insosso Pra não ser de carne e osso Pra não ser carne e osso Compositores: Zelia Duncan / Paulo Correa De Araujo Letra de Carne e osso © Casulo Promocoes Artisticas Ltda. Foto by: Rhuanny Rodrigues (Projeto Passarinho)

Poeminha Vulgar (Emanuel Galvão)

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Eu sou um papel higiênico Todo enrolado Ali, bem do lado da latrina As pessoas fazem as merdas... Eu cumpro o meu papel O papel, de papel higiênico Vou lá e limpo a merda que fizeram Daí, tudo bem... pra eles. Mas, um pedaço de mim Fica na lixeira. Eles vão me consumindo... Fazendo outras merdas... Mais um pedaço de mim... Deus que me perdoe A lágrima que inunda meu ser Meu ser desapontado... Eles não usam papel molhado. Copyright © 2007 by Emanuel Galvão All rights reserved. do livro Flor Atrevida pag. 72 - Editora Quadri Office

A Caixa de Brinquedos (Rubem Alves)

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  A idéia de que o corpo carrega duas caixas —uma caixa de ferramentas, na mão direita, e uma caixa de brinquedos, na mão esquerda— apareceu enquanto eu me dedicava a mastigar, ruminar e digerir santo Agostinho. Como você deve saber, eu leio antropofagicamente. Porque os livros são feitos com a carne e o sangue daqueles que os escrevem. Dos livros, pode-se dizer o que os sacerdotes dizem da eucaristia: "Isso é o meu corpo; isso é a minha carne". Santo Agostinho não disse como eu digo. O que digo é o que ele disse depois de passado pelos meus processos digestivos. A diferença é que ele disse na grave linguagem dos teólogos e filósofos. E eu digo a mesma coisa na leve linguagem dos bufões e do riso. Pois santo Agostinho, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do "uti" (ele escrevia em latim ) e a ordem do "frui". ...

Prometo Perder (Pedro Chagas)

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  «A nudez dói muito sobre aqueles que só se suportam cobertos.»   Assim, sem mais nem menos, ele, armado ao pingarelho, disse-lhe o que pensava. Ela parou, olhou-o sem mexer um músculo da cara, estendeu a mão de forma educada e apresentou-se.   «Suzana, com z. Mas podes tratar-me por quero-te.»   Ele sorriu, estendeu a mão, cumprimentou-a de volta e fez o que as regras da boa educação exigem.   «Daniel, com tesão. Mas podes tratar-me por anda comigo para casa.»   Ambos obedeceram.   Trecho do livro de crônicas Prometo Perder